Em junho, o portal G1 noticiou a admiração causada  por um peixe de água doce conhecido há muito tempo ( foi descrito na primeira metade do século XIX), mas pouco visto, o  abotoado ou cuiú-cuiú (fam. Doradidae), um tipo de bagre que tem o corpo coberto  por  dezenas de placas ósseas com espinhos. Por apresentarem esse revestimento incomum e sem escamas, peixes deste tipo são conhecidos como peixes-de-couro. O animal da fotografia foi capturado no rio Macacoari, em Macapá (AP).

peixe_de_couro

foto em http://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2013/06/peixe-de-couro-chama-atencao-de-turistas-em-macapa.html

Os cuiú-cuiús vivem em águas profundas das bacias dos rios Paraná, Araguaia e  Amazonas e  se escondem em “tocas” cavadas nas barrancas dos rios e entre a vegetação das matas inundadas. Com seus barbilhões rastreiam a areia e o lodo do leito dos rios em busca de alimento. Esses peixes são onívoros e podem se alimentar de moluscos, camarões de água doce, peixes menores, larvas, frutos, sementes e detritos. Os animais têm coloração escura que lembra cor de barro. Podem  medir até 70 cm e apresentar massa de 6 a 7 kg. Apesar de pouco conhecido dos turistas e visitantes ocasionais, o cuiú-cuiú é antigo conhecido dos indígenas e das populações ribeirinhas, que o usam como alimento. Em uma demonstração da profunda interligação entre os diversos organismos presentes nos diferentes ecossistemas, pesquisa publicada em 2007, revela que a pesca excessiva do cuiú-cuiú pode ter tido consequências até então não imaginadas.

Vamos conhecer essa história.

Em 2005,  centenas de moradores de Araguatins, cidade às margens do rio Araguaia, no estado de  Tocantins, apresentaram um estranho surto de irritação e coceira nos olhos, seguida de lesões na conjuntiva (uma das membranas que formam o olho) que, em alguns casos, produziu cegueira ou perda parcial da visão em pelo menos um dos olhos afetados pelo problema. A situação ficou tão séria que diversos pesquisadores foram contatados para encontrar uma explicação para o que estava acontecendo. Depois de várias hipóteses que não se confirmaram, duas pesquisadoras parecem ter encontrado a resposta e parte dela já era conhecida dos indígenas que habitavam a região há séculos. Pesquisas recentes, sobre a fauna do Araguaia  revelaram que  em suas águas vive uma grande variedade de esponjas  (classe Demospongiae), que os indígenas denominavam de “cauxi” ou “caixi”. As esponjas são animais sésseis, isto é, vivem fixos a um substrato, e são filtradores,  retirando da água o oxigênio e os nutrientes necessários a sua sobrevivência.  Para dar sustentação ao corpo, elas possuem estruturas microscópicas denominadas espículas. As esponjas de água doce possuem espículas minerais, compostas por dióxido de sílica. Quando os animais morrem, sofrem decomposição e as espículas se dispersam na água.

Espículas microscópicas (parecem pequenas agulhas)

Espículas microscópicas (parecem pequenas agulhas)

foto em http://www.gc.maricopa.edu/biology/lsola/Bio182/labreview/porifera/Spicules.jpg

Os indígenas, antigos habitantes da região,  reconheciam o perigo de  águas que tivessem cauxi e evitavam banhar-se nelas ou bebê-las. Relato de 1934, dá conta que eles ensinavam que as águas com cauxi “queimam”. Texto de 1955, reforçava que a população evitava tomar banho nesses lugares, bem como usar essas  águas. Eles temiam os espinhos pontiagudos do cauxi, que ficavam em suspensão na água e aderiam ao corpo causando coceiras desagradáveis.

Conhecedoras destas tradições, ao procurar esclarecer o surto que atingiu Araguatins, as pesquisadoras se voltaram para as águas do Araguaia. Coletaram amostras dessa água para examinar suas características e procurar espículas. Conversaram com os moradores para entender os hábitos locais. Descobriram que havia dez espécies de esponjas vivendo naquele trecho do rio e que nessas águas e no sedimento do fundo, havia  espículas. As entrevistas revelaram que as pessoas afetadas pela estranha doença ocular tinham o hábito de mergulhar e nadar junto ao leito do rio com os olhos abertos. Estudos posteriores analisaram os nódulos que se formavam no olho e em três casos, dentro deles,  foram encontradas espículas de duas espécies de esponjas: Drulia uruguayensis e Drulia ctenosclera.

Espículas de Drulia sp.

Espículas de Drulia sp.

 Drulia ctenosclera

Drulia ctenosclera

Drulia uruguayensis

Drulia uruguayensis

fotos de Drulia em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-81752007000300013

As espículas aderem ao olho e provocam a formação de nódulos como os observados nas imagens.

Nódulo na conjuntiva

Nódulo na conjuntiva

olhos com lesões por espículas - 2 Fotos em: http://www.nature.com/eye/journal/v27/n3/fig_tab/eye2012290f1.html

Mas se essa foi a causa do surto, restava uma questão: porque o número de esponjas e, consequentemente, de suas espículas parecia ter aumentado? Diversas hipóteses foram levantadas para tentar explicar o desequilíbrio que deu origem a essa situação:

a) a constante remoção de areia  do rio por dragas, faria as espículas depositadas no fundo ficarem em suspensão na água;

b) a crescente população de um tipo de moluscos gastrópodes que reviram o fundo lodoso do rio em busca de alimento também contribuiria para manter as espículas em suspensão na água. Esses moluscos teriam proliferado excessivamente pela falta de seus predadores naturais: os peixes cuiú-cuiú que, pescados em grande número, são cada vez mais raros na região;

c) a correnteza do rio que se desloca junto à margem onde se situa a cidade e ajuda a revolver o fundo;

d) o aumento de material orgânico nas águas do rio causado pela falta de saneamento básico. A maior oferta de alimento teria favorecido a multiplicação de bactérias que são a principal fonte de  alimento dessas esponjas.

O mais provável é que todas essas situações, associadas ao hábito de muitos moradores da região mergulharem de olhos abertos, expliquem o surto registrado na cidade de Araguatins em 2005.

Professor: O texto anterior pode ser usado para reforçar a grande biodiversidade de nosso planeta e em especial de nossos rios. Pode também ser usado quando procuramos mostrar a profunda interligação que os diferentes organismos mantêm entre si e com o ambiente. Estimule os alunos a sugerir alternativas para que outros surtos como esse não afetem as populações ribeirinhas de nosso país. Reforce a importância da orientação para prevenção e do saneamento básico.

O estudo sobre o surto de doença ocular em Araguatins pode ser lido integralmente em  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-81752007000100016  (acesso em 04  de julho de 2013).  E há um resumo em  inglês em http://www.nature.com/eye/journal/v27/n3/full/eye2012290a.html  (acesso em 04 de julho de 2013).